terça-feira, 19 de agosto de 2008

Estranho fascínio?*


Atingir o topo das montanhas mais altas do mundo requer técnica, planejamento, disciplina e determinação. Esportes, como este, considerados radicais, ganham novos adeptos. Está crescendo o número de profissionais liberais, jovens aventureiros e executivos, que abdicam do conforto de seus lares e partem em busca dos lugares mais inóspitos da terra. Uns fazem trekking em montanhas, outros praticam escaladas em rochas, descem canyons, voam de asa delta, deslizam em correntezas, saltam de pára-quedas, andam em balões. Enfim, eles encontram nestes esportes um meio para aliviar as tensões causadas pela vida contemporânea. A agilidade dos mais jovens é a grande aliada das escaladas em rochas. E a experiência acompanha os balzaquianos às montanhas mais altas do planeta.

O Rio Grande do Sul congrega 500 alpinistas. Muitos já obtiveram conquistas importantes, tanto nos 13 principais pontos de escalada do estado, como em outros continentes. A geografia do Sul ostenta rara beleza. De Terra de Areia a Urubici (SC) há 30 diferentes formações de canyons. No Parque Nacional de Aparados da Serra estão dois deles - o Itaimbezinho e o Arroio Faxinalzinho. São 5.800 metros de extensão e uma profundidade de até 720 metros. Inúmeros aventureiros despreparados e inexperientes deixaram suas vidas nesta monumental obra da natureza. Trata-se de um esporte de risco. E a descida no Itaimbezinho continua proibida, mesmo depois da abertura do parque.

Mas afinal, o que leva as pessoas a procurar locais tão perigosos? O que move cada um é muito pessoal, diz a psicóloga Duse Teitelroit. No entanto, há pontos em comum, como o amor à natureza, o gosto de contemplar a amplitude, as sensações de vitória e conquista.

"Embora nas alturas, são pessoas com os pés no chão. Ao mesmo tempo em que aspiram a liberdade, exercitam uma férrea disciplina. Têm consciência de cada passo. Não partem desprevenidas", explica a psicóloga. E mais, são muito maduras e inteligentes, pois necessitam de respostas prontas para situações não previstas e que nem poderiam ser calculadas. Para obter sucesso, precisam estar bem afetivamente e em paz consigo, pois não serão poucos os momentos de profunda solidão. "Fazem isto por prazer e não por fuga".

A jornada é cansativa, mas não estressante. "Deve brotar um sentimento de paz". O medo do perigo tem de estar presente para equilibrar o limite entre o desconhecido e a autoconfiança. Neste tipo de esporte, eles se sentem mais centrados no mundo, conscientes de si próprios e são movidos por um consistente espírito de solidariedade.

Em algumas montanhas há os livros de cume, guardados em caixas de metal. Nestes, os alpinistas escrevem poesias, estórias em quadrinhos, pensamentos. "Agradeço a Deus por ter nos guiado com segurança até a ponta de seu dedo", anotou Gustavo Marioto, ao concluir a escalada ao Dedo de Deus (RJ), no último inverno. Cuidados e precauções não excluem o risco de acidentes, como o do último fevereiro, quando o Aconcágua tragou o experiente Mozart Catão. Mas o fascínio do homem pela montanha faz com que ele desafie rotas ainda não exploradas.

Trekking na África - O primeiro gaúcho a pisar no cume do Kilimanjaro (5.895 metros de altura) foi o jornalista e editor Airton Ortiz, 43 anos. A investida, na mais alta montanha isolada do planeta, aconteceu em 1997. E exigiu um ano de preparo físico e a leitura de três dezenas de livros. O monte Kilimanjaro, na África, faz fronteira com o Quênia. Em seus 80 quilômetros, abriga três vulcões inativos há 100 mil anos. "A convivência com o perigo de morte me fez valorizar ainda mais a vida", conta. Esta experiência mudou radicalmente seu olhar sobre o mundo.

Antes de ascender ao Kilimanjaro, Ortiz era um executivo que desfrutava do conforto propiciado pela modernidade. Viajava de primeira classe, hospedava-se em hotéis cinco estrelas e freqüentava requintados restaurantes. Como proprietário das Editoras Tchê e Ortiz, teve a oportunidade de conhecer 50 países. Conquistou o ápice de sua carreira como editor aos 40 anos. Oportunidade em que proferiu palestra sobre o futuro do livro, na Universidade de Guadalajara, no México. Na platéia mil editores de 55 nacionalidades. "Cheguei o mais longe possível. A partir daí seria repetitivo. Precisava de outro desafio. Então, retomei o sonho da minha adolescência - viajar pelo mundo, colhendo informações para escrever meus próprios livros".

Sua primeira aventura foi contada nas 264 páginas da obra "Tekking no Kilimanjaro - uma aventura no topo da África", editado pela Record e que será lançado em abril. Em setembro ele desbravou a cordilheira do Himalaia, no continente asiático. No Tibet, percorreu de Land Rover mil quilômetros entre Lhasa e Katmandu, onde se avista a mais impressionante vista da cordilheira do Himalaia. Nos dois meses de viagem, Ortiz experimentou três trilhas. De Jiri ao campo básico do Everest gastou 15 dias, num percurso de 150 quilômetros. E, mais uma vez, foi gaúcho pioneiro nesta meta. Caminhou pelo Kala-Patar (5.600 m) e o Chukun-Peak (5.836 m). Em janeiro, Ortiz começa a escrever sobre esta aventura. O que mais o atrai hoje é a possibilidade de ampliar os limites. "Escalar uma montanha é um ato de humildade. É preciso reconhecer as próprias restrições, para superá-las".

A contemporaneidade, na sua opinião, afastou a convivência do homem com a natureza, o alienando do contato com sua própria origem. "Vivenciar 20 graus negativos na montanha, com frio, chuva e neve te leva a dar outro valor a um vaso sanitário, uma água encanada, um chuveiro quente e uma luz elétrica", observa.

Os obstáculos são ultrapassados um a um. "Se vai paulatinamente vencendo estágios, que no dia anterior eram barreiras intransponíveis. Isto faz com que a gente desconfie que exista dentro de nós uma força muito maior do que imaginamos. Faz com que aceitemos a existência de uma força superior que nos energiza. Num primeiro momento supomos que esta força possa vir da natureza. Mas ela não é física, nem química e tampouco biológica. Então, concluo - só possa vir do espírito".

Ortiz contemplou o amanhecer - no ponto mais alto do monte Kilimanjaro - no dia 17 de setembro. O ataque final foi de madrugada. "Tive muito medo. Mas pensava que este sentimento era circunstancial. Era uma fase necessária para chegar onde havia planejado. A paz foi intensa. Estava totalmente em minha companhia. Quando os primeiros raios de sol despontaram no horizonte - chorei muito. Foi uma grande comunhão comigo mesmo".

Ele desceu da montanha com a certeza de que a harmonia interior é muito mais valiosa do que o limite do seu cartão de crédito. De volta ao Brasil, concentrou-se um ano na narrativa de suas peripécias. Os planos de Ortiz são bastante audaciosos. Pretende escalar o Aconcágua e praticar trekking na Patagônia, no Pólo Norte, no deserto de Saara e o Caminho de Santiago de Compostela.

* Matéria de Stella Máris valenzuela publicada no Extra Classe, em dezembro de 98.

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